O verdadeiro ATO Nº3:

Ela ficou em pé mas não sentiu seus pés tocarem o chão de pedra. Citou para si Shakespeare e voltou para a cama. Parecia brilhante se esconder atrás de um gênio antes de conseguir se levantar e enfrentar o mau humor que a atingiria depois que o chão voltasse a esfriar seus pés descalços naquela manhã de segunda-feira. Fez um pequeno esforço, lutando contra o frio que fazia, mas não conseguiu se levantar... Apenas virou para o lado e cobriu seu rosto, numa tentativa de trazer a noite de volta.
Estava então de noite, conseguia sentir o cheiro da água. Logo ela que nunca gostou de chuva... Mas já não se importava mais. O sereno que caía parecia agradável como qualquer outra coisa que marcasse aquele lugar (logo ela que nunca gostou de lá...).
A idéia da felicidade parecia algo insustentável quando se parava para analisar as histórias dos dois caminhos percorridos. Se ela então fosse seguir a razão, o sereno da noite viraria uma tempestade... Mas naquele instante parou de chover.
Tirou a coberta de seus olhos e olhou pra frente. Sentou-se na cama, e recitou Shakespeare bem baixinho.

"E nem espanta o olhar errar de susto
Se sem céu claro nem o sol enxerga.
Esperto amor, com pranto a me cegar
Pra cobrir erros quando o amor olhar.
"

Levantou-se e o sorriso apareceu em seu rosto. Sentia o chão e ele nunca pareceu tão convidativo quanto naquela manhã. Podia vir Shakespeare com todo o lirismo do mundo falando o contrário, mas o frio subindo pelos pés provava que a felicidade não é apenas um sonho.

Sobre nós mesmos


Ignorem a menininha do começo e pulem pra 5:40.

O nome disso não é talento, não mesmo. Quando assisti eu imaginei toda a trajetória desse homem para chegar nesse nível.
O nome disso é perseverança, força de vontade.
Confesso que fiquei com vergonha de passar o dia sentada na frente de um computador depois de ver esse cara.

José


Toda aquela água em baixo dos pés de José faziam com que a coragem dele extraviasse.
José era homem comum. Trinta e poucos anos, alguns invernos vividos. Acordava às seis pra colocar as crianças pra escola, já que a mãe saía às cinco e meia para chegar no seu trabalho de doméstica do outro lado da cidade. José era decidido, tinha cinco tatuagens, cada uma para um filho diferente e uma para a mulher que ele amava tanto. José trabalhava como pedreiro pra colocar comida na mesa todos os dias. Construía prédios grandes, onde os patrões que lhe pagavam tão pouco iriam morar. José tinha uma casa pequena, dividia seu quarto com sua mulher e dois dos quatro filhos (os outros dois dormiam na sala). Os filhos de José tinham orgulho do pai, pois este lutava muito para conseguir dar uma vida não tão ruim para eles.
José, mesmo não tendo uma vida tão ruim, não aguentava mais tudo aquilo. José sabia que os filhos e a mulher precisavam dele. José tinha uma visão de mundo diferente: ele que trabalhava tanto, precisava ganhar mais. José lutou, lutou e lutou... e acabou parando em um penhasco ao lado de uma cachoeira.
José olhou pra baixo e viu muita água. Viu seus filhos, sua mulher que tanto amava. Toda sua coragem foi embora...
"Não posso desistir agora! Sou homem corajoso, decidido. Nunca desisto das coisas."
Fechou os olhos e lembrou dos momentos felizes que passou na vida.
Fechou os olhos e viu Mariana, a filha mais nova, dizendo "eu te amo, papai".
E mesmo com tanto amor e carinho, na queda ele gritou o nome de um cara que ele nunca tinha visto na vida:
- Jeeeesus!
Era alto demais. O barulho do vento passava pelas orelhas de José e o barulho que isso fazia lembrava um pouco os sons dos filmes de guerra em preto-e-branco que José assistia quando era criança. José sentiu a água batendo em seu corpo e sentiu a mesma dor que sentiu quando os políciais bateram nele porque estava vendendo bijouterias na rua no centro da cidade. Foi descendo lentamente até chegar ao fundo. José não via mais nada, estava tudo escuro.





Ao voltar para a surpefície viu seus quatro filhos brincando na água e sua mulher sorrindo ao lado da cachoeira.
José não era homem de desistir fácil, não. José tinha conseguido juntar um dinheirinho, tirou férias com sua família e foi até o interior, numa cidadezinha muito bonita, cheia de cachoeiras. José era homem comum, era homem simples. José não tinha muito, mas lutava pra conseguir. José tinha vida sofrida como todos os outros Josés por ai. Mas José era homem feliz.

Da vida

Um dia eu estava sentado em um balanço, pensando com os meus botões, quando chega um menininho de aparência peculiar. Um metro e trinta e poucos centímetros, cabelos tão loiros que para um velho como eu pareciam brancos como os poucos fios que habitam minha cabeça. Usava uma camiseta azul com um herói americano estampado na frente e segurava um enorme pirulito colorido, cheio de corantes artificiais e milhares de substâncias que me matariam em alguns segundos.
Ele me olhou desconfiado e sentou-se no outro balanço. Depois de alguns segundos, resolvi falar com ele.
- Então, guri. Posso saber por que você me olha assim?
- Você não acha que está grandinho para brincar de balançar, moço?
Já era de se esperar, essas crianças de hoje em dia não são tão bem educadas quanto as de uns anos atrás, não é mesmo?
- Pois então, acha que eu não posso brincar de balançar?
- Acho que não. Você sabe se balançar como eu? - Disse o garoto enquanto mostrava o quão alto conseguia chegar.
- Não sei fazer isso que você faz, mas sei muitas outras coisas.
- Sabe?
- Sei. Quer ver?
- Duvido. Você não sabe de nada...
- Pois então, sei que seu nome é Gabriel. Sei que você sabe se balançar alto e sei que esse seu pirulito faz um mal absurdo pra saúde.
- Hm... Continuo sem acreditar.
- Então me faça qualquer pergunta, guri.
- Por que os índios fazem a dança da chuva mas quando chove muito eles reclamam?
- Nada ao extremo é bom, não concorda?
- Tá bem. Por que seus cabelos são brancos?
- Não são brancos, só são mais loiros que os seus...
- Por que você tá aqui, sozinho?
Essa última pergunta me pegou de surpresa. Por que eu estava sozinho em uma praça? Era de se esperar que depois de tanto tempo eu já estivesse casado, acumulado uma vida inteira de felicidades. Então eu estaria sentado aqui, ao lado do meu neto, contando pra ele histórias de militares enquanto ele brincava com seu carrinho na caixa de areia. Sua avó estaria do meu lado e seus olhos azuis brilhariam do mesmo jeito que teriam brilhado no nosso primeiro encontro. Meu filho me ligaria perguntando se estava tudo bem com o meu netinho e eu responderia que sim. Voltaria pra casa quando o relógio marcasse meio-dia.
Mas eu estava sentado num balanço, conversando com o Gabriel, menino loiro com o pirulito sabor tutti-frutti colorido artificialmente.
- Por que você acha que estou aqui sozinho?
- Eu acho que você não sabe responder, lero lero.
- Ok, confesso. Não sei...
- Sei que não sabe, moço.
- Sabe, é?
- Uhum. Você não sabe de nada.
- Não? E você sabe de tudo, Gabriel?
Nessa hora, uma senhora se aproximou da gente e disse para o menino: - Vamos, Guilherme. Vamos almoçar.
Rindo, ele disse: - Não sei de nada. Mas você deveria parar de me chamar de Gabriel...
Jogou a embalagem do pirulito no chão. Nela estava escrito "Este produto é feito de frutas colidas a mão. Produto artesanal".
E eu que sabia de tudo, passei a não saber de nada. Apenas observei os dois indo embora. Enquanto se distanciavam, a senhora olhou pra mim. Seus olhos azuis brilhavam fitando meus cabelos brancos enquanto meu relógio apitava avisando a chegada do meio-dia.


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Só pra não deixar morrer. :\
Desculpa os erros ortográficos \o