O pobre, imutável e rotineiro ATO Nº1:

O incansável barulho dos trens em seus trilhos ensurdercia a massa de trabalhadores que voltava para alimentar suas famílias. A noite lentamente começava a tomar conta do local. No corpo dela, as piores roupas do armário. Era só mais uma viagem rotineira, não havia motivo para qualquer arrumação fora do comum. A blusa básica, apesar do tom desbotado, caía bem sobre seu corpo e fazia do seu rosto um pouco menos pálido do que o normal. Suas calças estavam aparentemente velhas e suas meias eram laranjas, contrastando com seu par de tênis preto. Seus cabelos, como sempre, bagunçados. Sem maquiagem, sem retoques. Ela era apenas ela, sem máscaras.
Algumas pessoas esbarravam na menina enquanto ela lutava contra a multidão que vinha na direção contrária. Eles voltavam de um dia de trabalho extremamente cansativo, dava para perceber no rosto de cada um e ela ignorava todos eles, como se fossem invisíveis.
Subiu as escadas da estação. Agora ela estava parada em uma rua larga, tão lotada de pessoas quanto na rua anterior. Todos, como antes, eram invisíveis pra ela... e ela se sentia sozinha, mas isso não era um problema. Passava por todas as pessoas como alguém passa por árvores. Passava sem olhar nos olhos de ninguém. Chegou ao seu destino. Uma loja grande, antiga e extremamente feia. Era ali que ela encontraria o que faria seu mundo se tornar feliz. Coisas materiais, nada que o dinheiro não compre. Então encheu sua bolsa com a sua felicidade recém-comprada e rapidamente tomou o caminho para casa.
Voltava pela rua grande. Agora o fluxo de pessoas havia diminuído. O céu já estava escuro e cheio de estrelas. As poucas pessoas que passavam continuavam invisíveis para ela. Ela estava entediada, queria ir para casa o mais rápido possível.
Estava prestes a entrar na barulhenta estação de trem quando se deparou com uma cena que chamou a atenção. Na frente do semáforo quebrado estava ele, parado. Vestia uma blusa que fazia com que seu rosto ficasse mais bonito, apesar do tom desbotado. Suas calças eram velhas, rasgadas. Cabelos bagunçados e, em seus pés, meias laranjas. Ela poderia estar exagerando, mas sentiu, pensou, achou que ele era especial. Não perdeu tempo, se aproximou. Encostou no semáforo e ficou observando-o por alguns segundos... Era tão estranho. Ela se sentia como um animal selvagem que acabara de descobrir algo. A curiosidade era absurda. Queria saber mais sobre o rapaz que se parecia tanto com ela... Queria saber tudo. Agora só algumas poucas pessoas passavam por eles. Ele olhava para frente, como se esperasse algo. Ela olhava para ele, obsessivamente. As lojas já começavam a fechar suas portas e o barulho dos trens continuava, mas agora ele parecia muito, muito distante. Ele olhou para ela e logo percebeu que estava sendo observado. Observou-a também por longos segundos, tão curioso quanto ela. Arrumou seu cabelo, pegou lápis e papel no bolso. Desenhou algo, rapidamente e começou a andar. Instintivamente, ela o puxou pelo braço. Ele olhou para ela, confuso. Ela, sem ter o que dizer, apenas perguntou as horas.
- Nove e vinte e seis. - Respondeu ele, a observando novamente, se perdendo em seu pensamento. Sorriu e voltou a andar.
"Nove e vinte e seis. Nove e vinte e seis. Nove e vinte e seis". A mesma frase ecoava em sua mente. Agora ela sabia algo sobre o rapaz. Sua voz era linda e ela se lembraria disso por muito tempo. Se sentia feliz em ouvir a voz de um desconhecido que usava roupas iguais as suas. Parecia tão idiota, mas era o que estava acontecendo.
Pegou o celular, agora eram nove e trinta e quatro. Queria poder seguir o rapaz, perguntar seu nome... mas apenas voltou para a barulhenta estação de trem. Tinha medo de o perder, mesmo sem o ter. Tinha vontade de se amarrar a ele, dar o nó mais forte de sua vida... mas agora estava apenas voltando para casa. Durante a viagem sentiu vontade de jogar aquela felicidade comprada que estava dentro da bolsa pela janela, pois ela já não fazia com que a menina se sentisse tão feliz quanto antes.

A menina voltou na semana seguinte para a mesma rua onde cruzara com o rapaz. Vestia agora sua melhor roupa. Suas meias combinavam com o par de tênis, que estava limpo. Sua melhor calça e maquiagem pelo rosto. Nesse dia ela não comprou nada, apenas ficou no semáforo quebrado, lembrando da voz do rapaz, desejando que ele voltasse. Todo mundo que passava era invisível para ela até o momento em que a figura do garoto de meias laranjas apareceu. Ele estava lá, com roupas tão velhas quanto as da semana anterior, mas vestia as mesmas meias laranjas. Segurava em sua mão direita aquele papel com o desenho. Olhou para a menina. Pegou o papel, desapontado e o jogou no chão. Andou em direção a estação de trem e desapareceu no meio das pessoas. A menina pegou o papel, nele tinha um tosco desenho dela feito pelo rapaz. Ao lado, estava escrito "'Nove e vinte e seis', apenas o que eu consegui dizer ao ver a garota que, sem fazer nada, fez eu me sentir feliz". A voz do rapaz ecoava cada vez mais alto na mente da menina e a maquiagem agora se tornava uma máscara extremamente pesada e feia. Ela olhou para os lados, todas as pessoas eram invisíveis. Pela primeira vez ela se sentia mal por estar sozinha. Pela primeira vez ela odiava alguém por o amar tanto, mesmo sem o conhecer. (continua)

*ignore os erros*

4 comentários:

  1. Eu sou mestre em criar situações na minha cabeça iguais a essa dela.. embora perguntar a hora seja demais pra mim, eu acho..
    Mas isso tá mudando, cada vez mais eu penso que cada minuto vale.. e que é melhor que aconteça alguma coisa, mesmo que ruim, do que não acontecer nada... xD

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  2. Gostei do texto!! E tentar parecer especial, não é legal...

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  3. história muito boa!

    gostei por ser uma história que começa simples, mostrando um cotidiano comum e repetitivo - que achei bem expresso quando a protagonista parece demonstrar uma certa indiferença às outras pessoas -, e então surge essa situação que praticamente força ela a agir de forma incomum. deu pra sentir o contraste entre as outras pessoas e o rapaz.
    achei legal a forma que foi escrito também. achei que as frases que se repetem, remetendo a pontos anteriores da história foram bem colocadas, e dão um ar poético na coisa toda.

    gostei muito mesmo. estou só tentando entender e explicar por que gostei, nem sei se isso é uma coisa boa de se fazer.
    vai que eu acabo interferindo na espontaneidade, com essa análise inútil. nesse caso, melhor ignorar o que eu falei até aqui.

    achei estranho o (continua). eu achei que ficou uma boa história do jeito que está. podia ser chamar "nove e vinte e seis"

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  4. Mas a história sempre continua.
    Coitada da garota. Imagina só se a história acabasse ali...

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